quinta-feira, 23 de abril de 2015

A rede de proteção que devia, mas não protegeu Bernardo

UM PAINEL DA ATUAÇÃO DA REDE DE PROTEÇÃO NO CASO  BERNARDO UGLIONE BOLDRINI


A jornalista Adriana Irion, do Jornal Zero Hora , em matéria de 27/09/2014, traçou um mapa do difícil e longo caminho que Bernardo Uglione percorreu, até chegar sozinho, ao Fórum local de Três Passos, em busca de ajuda contra a crueldade da madrasta Graciele Ugulini e a negligência do pai Leandro Boldrini que culminando com um trágico desfecho em 04/04/2014.
Abaixo a transcrição da matéria com algumas alterações,  que julguei de praxe, em decorrência da evolução do caso. Matéria na íntegra, disponível em:<zh.clicrbs.com.br/.../as-falhas-na-rede-de-protecao-que-nao-salvou-berna...>



- "Bernardo, se você fosse um personagem de uma história, qual gostaria de ser?"
- "Nenhum. Ninguém me conta história."

A narrativa acima são trechos de uma conversa do menino Bernardo com uma médica (não identificada), amiga de sua mãe, Odilaine Uglione, que aconteceu antes que Três Passos, no Noroeste do Rio Grande do Sul, se tornasse palco em 04/04/2014, da mais triste história a ser contada para o país e para o mundo: a História de Bernardo Uglione Boldrini, o menino que só queria o amor de uma família. Ele era um garoto da classe média alta, filho de médico, órfão de mãe, que no entanto, devido a maus-tratos recebidos dentro de casa, mendigava pelas ruas de sua cidade por alimento, carinho e...roupas. Bernardo é também o menino que em certo dia de janeiro de 2014, se dirigiu sozinho ao Fórum local, para reclamar da crueldade da madrasta, Graciele Ugulini e da negligência do pai, o médico Leandro Boldrini e que acabou sendo assassinado por eles e enterrado num buraco raso às margens do Rio Mico, na Linha São Francisco, em Frederico Westphalen.

O lugar bastante ermo, ainda hoje, recebe visitas e no local, sobre uma grande pedra, foi erigida um placa com foto e nome em sua homenagem. Culpas, questionamentos e lágrimas  entremeiam  os relatos do que cada habitante três-passense poderia ter feito para evitar a tragédia que se abateu sobre o menino. Enquanto a comunidade reclama de morosidade por parte das autoridades, no processo de retirada da criança do ambiente familiar tóxico em que se encontrava, os servidores da Rede de Proteção (ação integrada de instituições governamentais e não governamentais de redução da violência contra o menor), por sua vez, também se ressentem que a população, quando tem conhecimento de casos dessa natureza, não fazem denúncia.  

- "A gente não está procurando culpados, mas um pouco de cada um se omitiu. Nos sentimos em luto, quando aconteceu. Nos sentimos mal, pensamos: o que faltou a gente fazer mais, o que aconteceu?" - Questiona Deborah Granich, conselheira tutelar.

Deborah Granich, conselheira tutelar. Foto de Diego Vara/Jornal Zero Hora.

Trinta e um: essa é a conta dos gritos emitidos por Bernardo como forma de verbalizar a agressão física e psicológica sofrida do pai de da madrasta. A amplitude da crueldade infligida a ele não ficou somente no vídeo para ser vista, ela ficou diluída nos difíceis e intermináveis dias vividos pelo menino, longe da mãe, falecida em 10/02/2010, vítima de um suposto suicídio e que agora encaminha para um provável homicídio.
Bernardo era proibido de ter acesso à residência. Para não perder as aulas de manhã, tinha que ser acordado pelos colegas de escola. O menino tinha problemas de aprendizagem e nas tarefas escolares era sempre auxiliado por famílias amigas ou até pela secretária da clínica de Leandro Boldrini. Ele não podia usar o computador ou a impressora, não podia nadar na piscina da sua casa, não podia brincar com a meia-irmã, Maria Valentina, não podia se alimentar, não podia fazer a higiene pessoal adequadamente, não podia levar lanche para a escola, não podia se vestir como os meninos da sua idade... não podia...não podia...

Pai e madrasta eram totalmente omissos na vida de Bernardo. Eles nem sequer compareceram à cerimônia de sua Primeira Comunhão. De acordo com declaração dos seus coleguinhas de escola, entre o garoto e a madrasta, existia um código de convivência que os impedia de se falarem.Tocar no nome de Odilaine era terminantemente proibido, a ponto de rasgarem suas fotos e sumirem com seus pertences, a não ser o Vectra branco de Odilaine e as roupas da falecida que ela teimava em usar, talvez como forma de espicaçar o menino. O próprio Bernardo se auto-medicava com remédios controlados e potentíssimos fornecidos por Leandro e que o menino constantemente trazia na sua mochila.
No final do ano de 2013, seu peso não condizia absolutamente com seu tamanho e idade e em janeiro de 2014, não mais suportando as condições degradantes a que era submetido, ele resolveu sozinho, se deslocar até o Fórum local onde pediu a Promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira para trocar de família.

Isso, nem de longe representava o real perigo ao qual Bernardo estava exposto. Quem poderia imaginar: o filho de um médico e enteado de uma enfermeira:

- "A gente analisa que essas pessoas (médico e enfermeira),estão ali para salvar vidas, não destruir. A gente tem eles como referência." - Conta Isoldi Schumann, conselheira tutelar.

Uma companheira de trabalho de Deborah e Isoldi no Conselho Tutelar, ao saber que se tratava de Leandro Boldrini e Graciele Ugulini, pediu para se desligar do processo, em parte por ter um parente em tratamento com o médico e por outra, por ter trabalhado em época anterior com a enfermeira.

- "É o problema de se enxergar as pessoas pela ótica da profissão que exercem, e aqui no Interior, a gente veste a camisa da profissão. Todos te vêem como a jornalista, a psicóloga, a assistente social. Ninguém te imagina com dois discursos, que tu cuide de teus pacientes e não cuide de teus dependentes, teus afetos. As pessoas não queriam se intrometer nessa família." - analisa Ariane Schimdt, ex-psicóloga de Bernardo e amiga de Leandro.

O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) sabedor da situação de negligência de que Bernardo era o alvo, resolveu agir, não antes de um certo receio:

- "Imagina nossa situação: ele (Boldrini) poderia nos processar. Dizer: "O que é que essas mulheres estão fazendo aqui? Ele poderia. Nós não tínhamos amparo legal para estar lá. Somos órgãos de atendimento. Não somos órgãos de averiguação, com poder de intervenção. Esse poder é todo do Conselho Tutelar. " Declara Raquel Rafaelli, Psicóloga do CREAs, órgão ligado à Prefeitura de Três Passos.

Raquel Rafaelli e a assistente social Juliana de Quadros resolveram então contatar o Conselho Tutelar em busca de "suporte legal", sendo Juliana, inclusive, quem esteve com o conselheiro tutelar no Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudava, para colher informações acerca do menino. Eles o ouviram em julho de 2013.

 - "Ele estava meio abatido, mas não falou em maus-tratos." - Relembra o conselheiro tutelar Nestor Weschenfelder.

Em mais de uma oportunidade, Leandro Boldrini foi contatado pelo CREAS e Conselho Tutelar, entretanto ele foi bastante resistente à aproximação dos servidores.Uma avaliação sobre Bernardo também foi solicitada ao Colégio Ipiranga, mas entre julho e novembro de 2013, o processo ficou totalmente parado, apesar de que os rumores sobre o estado de abandono do menino tenham se intensificado:

- "É importante que a sociedade se posicionar. Sem denúncia formal, nosso poder de trabalho diminui muito. Só tínhamos comentários (julho 2013). Nossa postura foi intervir e aguardar. Depois do que ocorreu, a gente revisou, revisou e revisou em nossa mente. Qual a conclusão: nós trabalhamos com situações de violência. E essa situação não se confirmava. Como é que vamos intervir? O CREAS fez mais do que é seu trabalho. Quem apura é o Conselho, a Polícia. A Rede tem um limite, tem que respeitar o espaço do outro." - Justifica Raquel.

Em 28/11/2013, o Conselho Tutelar recebeu o relatório da Escola informando que Bernardo havia apresentado melhora, mas continuava reclamando a atenção do pai. A Repórter do Jornal Zero hora confirma que o Diretor do Colégio Ipiranga Nelson Weber é reticente ao falar sobre o assunto, no entanto, ele garante que os valores estão sendo trabalhados entre os alunos.

- "Questões de família, da vida, de amizade, os valores são tão amplos, a valorização do ser humano, coleguismo, fraternidade. Isso faz parte do nosso dia a dia." - Responde o Diretor e continua:

- "O Conselho apareceu aqui. Não sei precisar exatamente, sei que o contato ocorreu. O Conselho Tutelar tinha conhecimento. Tudo foi conversado. O Bernardo gostava de estar na escola, era acolhido, tinha o carinho de todos. Se todos tivessem dado a parcela que a escola deu..."

Diretor Nelson Weber / Foto de Diego Vara.

O Conselho Tutelar garante que da direção do Colégio Ipiranga, nunca partiu nenhuma denúncia sobre os problemas de Bernardo: eles só ficaram conhecidos, depois que o órgão procurou a escola. Todas as dificuldades do menino eram do conhecimento da sua escola, até o fato dele se transformar em alvo de brincadeiras por parte dos colegas:

- "Nesse ano (2014), a turma da escola criou uma brincadeira, baseada no Bernardo Boldrini, de "mendigar" o lanche. Começou com Bernardo porque ele mendigava o lanche dos colegas."-Disse a mãe de um dos colegas de escola de Bernardo, em depoimento à Polícia."

Nada disso foi comunicado aos órgãos de proteção à infância. Bernardo se dirigiu, solitário ao Fórum local em janeiro de 2014 procurando ajuda:

- "Quem enxerga o problema não tem obrigação de resolvê-lo, mas tem de comunicar, levar adiante. Este é um dever da escola." - Fala a Juíza Vera Debone, da 3ª  Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre.

A condição financeira da Família Boldrini não teve influência alguma, no tocante ao relaxamento na ação protetiva da Rede, é o que alega o Conselho Tutelar de Três Passos:

- "Para nós, todos são iguais. O Conselho não é só para pobre. Acontece que, talvez, aqueles gritos (31 ao todo, gravados pelo pai  e que vieram à tona na semana da primeira audiência do caso), por quê vizinhos não vieram denunciar? Isso a gente pensa hoje. Por quê não vieram denunciar? Medo? Como não ficamos sabendo? A babá, por quê não veio falar para nós? É tudo coisa de se pensar hoje." - Questiona a conselheira Deborah.

Elaine Radke, a ex-babá de Bernardo, foi quem avisou a avó Jussara Uglione, em Santa Maria, ao ouvir do menino a tentativa que Graciele Ugulini fez de sufocá-lo com um travesseiro, em 2012:

- "Eu lutei pelo Bernardo, até onde pude." Lamenta Jussara Uglione, referindo-se aos 4 anos de afastamento forçado do menino decidido por Leandro Boldrini, desde a morte de Odilaine em 2010. Em 2012, ao tomar conhecimento da tentativa de homicídio contra o neto, a avó materna com o auxílio do Advogado Marlon Taborda, enviou sucessivos e-mails para os Conselhos de Santa Maria e Três Passos, comunicando o fato e pleiteando a guarda do menino, em confirmação também por telefone. Os conselheiros não se manifestaram na época, mas  se defendem:

- "Isso foi para o MP. A Polícia devia investigar. Não podemos responder ofício para o advogado." _ afirma a conselheira Deborah.  

- "Se essas denúncias foram para Santa Maria, lá deveria ter sido feito registro policial." - Reforça a conselheira Isoldi.

Rosani do Nascimento, a conselheira que não quis se envolver na questão de Bernardo por consideração a Leandro Boldrini e Graciele Ugulini, relatou que o Conselho recebeu a comunicação do Dr. Marlon Taborda a respeito da tentativa de asfixia feita pela madrasta ao menino, mas pelo fato de Bernardo não ter relatado nada, também não perguntaram a ele sobre o acontecido.

Jussara Uglione / Foto de Jean Pimentel.

Hélio Eberhart, o Coordenador do Conselho Tutelar em Três Passos esclareceu à Polícia, que não sabia informar se a denúncia da tentativa de asfixia tinha sido investigada. Sobre isso, ele alegou não ter conhecimento, a não ser através de e-mail, recebido do Conselho Tutelar de Santa Maria.

Caroline Bamberg, a Delegada da Polícia Civil de Três Passos,  censura:

- "Se tivesse chegado ao conhecimento da Polícia, a questão da asfixia, eu teria feito uma ocorrência, instaurado inquérito e ouvido as pessoas. Ouvido a Elaine, o Bernardo, a madrasta, o Leandro. Teríamos investigado, que é o nosso papel."

Entretanto, uma outra ocorrência em junho de 2013, passou despercebida aos olhos da Polícia. Leandro Boldrini apareceu na Delegacia de Três Passos com gravações de Bernardo empunhando um facão e sofrendo provocações dele. Boldrini disse ao Policial que estava mostrando o vídeo com a intenção de se "precaver". O policial que atendeu o médico não levou o caso adiante e orientou Leandro a procurar o Conselho Tutelar. Somente depois do desaparecimento de Bernardo e apesar da orientação do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA), é que o Policial se lembrou de relatar o ocorrido. Se ele tivesse aberto uma ocorrência, o caso teria passado pela análise da Delegada.

- "Eu estava caminhando e ele também, me olhando. Ele andava  e me olhava. Hoje, penso se ele queria me falar algo." - Recorda a Delegada, da última vez que viu  Bernardo na escola.


Delegada Caroline Bamberg / Foto:Diego Vara.

Agosto de 2013: mais um capítulo da dramática História  do menino Bernardo esteve ao alcance das autoridades. A Brigada Militar foi acionada por um vizinho e se dirigiu para a residência da Família Boldrini, na mesma data em que Bernardo gritava por socorro e recebia as ameaças e xingamentos do pai e madrasta. Tudo revelado pelo celular de Leandro, em vídeos apreendidos pela Polícia. Ele diz na gravação:
- Ó, eu faço tudo o que é coisa certa. Tem Polícia na frente da minha casa, sábado de noite, né."

O que foi conversado entre a Brigada Militar e Leandro Boldrini não ficou registrado. A Brigada abriu sindicância para apurar o fato:

-"Não foi ocorrência específica no Boldrini. Segundo, estamos levantando. Foi repassado para a sala de operações que havia "gritos" próximo à caixa de água e ponto (a rede da Corsan fica em frente da casa de Bernardo). Foi despachada viatura. Durante a averiguação, se bateu em residência perguntando quem ouviu e se bateu na casa do Boldrini também. estamos apurando quem foi atender e como foi o atendimento." - Explica o Major Diego Munari, do 7º BPM.

Major Munari / Foto de Diego Vara.

No final de novembro de 2013, a Promotora Dinamárcia ficou sabendo dos problemas que aconteciam com o menino e numa reunião com os agentes da Rede de Proteção, ela solicitou relatórios, só escritos nessa época, apesar da movimentação do Conselho Tutelar em Julho de 2013. O Dr. Marlon Taborda, em 06/12/2013, apreensivo com a demora das respostas do Conselho Tutelar aos seus e-mails, resolveu então, enviar para o Ministério Público, as descrições sobre a tentativa de asfixia e a situação de abandono de Bernardo. A ex-babá Elaine Radke, o pai, a madrasta e Bernardo não foram procurados para esclarecimentos, mas em 16/12/2013, a Promotora Dinamárcia instaurou um  procedimento administrativo, onde eram adotados os trâmites legais que permitiriam a avó materna de Bernardo ser ouvida em Santa Maria e dessa forma assumir a guarda provisória do neto.

Promotora Dinamárcia / Foto de Carlos Macedo.

Parece que o resto da Família Boldrini vivia sossegadamente em posição de "paisagem", enquanto um membro indesejável se deslocava para Santa Maria a fim de visitar a avó materna Jussara Uglione e a Madrinha Clarissa. Foi Clarissa quem aconselhou Bernardo a não tomar os remédios fortes, de tarja preta, que o menino portava a mando de Leandro Boldrini. Depois de passar o final do ano de 2013, na companhia de entes queridos, Bernardo voltou resoluto. Em 24/10/2014, ele saiu da loja da Tia Ju e sozinho, venceu os 93 passos que o separavam do Fórum e falou firme ao Guarda que vigiava a porta:

 - "Quero falar com o Juiz."

Matheus Menezes de Moura, Coordenador de medidas sócio educativas do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDEDICA), foi a pessoa que atendeu Bernardo: 

- "Sou Bernardo, sou filho do médico Leandro Boldrini. Quero falar com o Dr. Fernando, o Juiz." Disse Bernardo.

- "Mas por quê tu queres falar com o Juiz?"- Inquiriu Matheus.

- "Estou recebendo maus-tratos da minha madrasta e eu queria falar com o Juiz a respeito disso."

- "Calma, não é assim, vou te levar para o Conselho Tutelar." - Matheus.

- "Mas eu queria falar com o Juiz."- insistiu o menino.

Matheus, convencido com os argumentos do menino, levou-o ao Juiz que ouviu suas queixas. Em seguida, encaminhou Bernardo à Promotora Dinamárcia. Dinamárcia confirma que a história contada por Bernardo não ficou registrada em nenhum documento dentro do Fórum "a não ser na minha mente e aqui (mostra o coração), como mãe que sou."
E recorda trechos da fala de Bernardo, sentado no seu colo:

- “A minha madrasta é uma bruxa, ela me xinga de tudo que você possa imaginar, e o meu pai dá razão para ela. Eu não tenho comida de noite porque não tem tata (empregada, babá). Eu tenho que tomar leite, comer banana, fazer ovo cozido ou então eu vou comer na casa dos meus colegas. Não tenho chave de casa, ela briga comigo e eu tenho que esperar 10 e meia da noite o pai chegar para eu poder entrar em casa. E eu não aguento mais isso. Deram todos os meus cachorros. E hoje foi a gota d’água, porque ela me chamou de veadinho e eu atirei um copo nela. O copo não pegou, mas eu estou com medo, estou cansado, eu nunca tinha feito isso de atirar um copo nela. Então eu não quero mais ficar naquela casa. Eu estou na casa da tia Ju (Juçara Petry). E eu queria te dizer assim, promotora: eu quero que a Ju e o marido dela sejam meus novos pais, porque eu quero ter pais com amor. 

Retornando à loja da Tia Jú, Bernardo estava muito feliz e desabafou:

- "Ele me disse: pronto, falei tudo, bluft." - Relembra Juçara Petry. Bernardo não contou a ela detalhes da conversa dentro do Fórum. 

Baseada em relatórios produzidos pelo Conselho Tutelar, Creas e Colégio Ipiranga, a Promotora Dinamárcia,  entra então,  com uma ação protetiva, sugerindo que a guarda provisória de Bernardo ficasse com Jussara Uglione, depois da tentativa infrutífera com pessoas da cidade.

- "A postura de Bernardo, ao procurar sozinho,  atendimento no Fórum foi determinante para que esta Promotora deliberasse pela necessidade de ajuizar de pronto, uma Ação Protetiva, em favor do menino, para fazer cessar a vulnerabilidade à qual estava exposto. Havia uma criança, órfã de mãe, que buscava solitária, outra família, noticiando-nos atos de abandono e exclusão por parte do pai e madrasta - " Disse a Promotora Dinamárcia em entrevista por e-mail.


O Juiz Fernando Vieira dos Santos, recebendo a ação do Ministério Público, decidiu por marcar uma audiência de conciliação com Bernardo e o pai, sem se aprofundar na análise de todos os outros pedidos que constavam na ação, entre eles, a solicitação de que Bernardo e a família se submetesse à avaliação psicológica
Diante da decisão do Juiz, a Promotora não recorreu. O Juiz Fernando Vieira dos Santos por sua vez se defende:

- "Qualquer dos órgãos de proteção que tinha conhecimento do caso poderia realizar monitoramento espontâneo, não havia necessidade de determinação judicial. Adverti ele (Boldrini) a respeito das represálias ao menino e não seria o acompanhamento da família que impediria que ocorressem, na medida em que a execução do delito revelou algum calculismo alheio a qualquer monitoramento. - "


- "O Bernardo foi enganado. E eu me senti enganado. Assim como ele, eu não sabia que ele estava sendo levado para Frederico Westphalen." - Justificou o Juiz ao G1. 

De acordo com o Conselho Tutelar, a informação da audiência no Fórum com o Juiz, Leandro e Bernardo, só chegou ao seu conhecimento depois que o menino foi dado como desaparecido:

- "Na audiência é importante destacar, não estávamos (até onde se sabia e nos era possível saber) com um pai infrator; longe disso. O pai era um cidadão sem maus antecedentes, com atividade conhecida na cidade e sob o qual não pesava, "apenas" ( e não acho que isso seja pouco, tanto que ajuizei a ação), a notícia de ser negligente com o filho. Não havia notícia de violência contra Bernardo, já que a única menção (da baba´), não se confirmou nas entrevistas do menino." - afirmou Dinamárcia por e-mail.

Em 11/02/2014, a audiência tão ansiosamente aguardada por Bernardo finalmente aconteceu. Nada do que foi prometido por Leandro ou pelo filho foi gravado ou registrado formalmente, a não ser parte dessa audiência que foi gravada por Leandro Boldrini, à revelia do Juiz e posteriormente vinda a público quando a Polícia apreendeu o celular do médico e os peritos puderam revelar o seu conteúdo. O Juiz esclarece que "registrar por escrito diálogos mantidos em ambiente de conciliação, não é comum. A gravação da audiência realizada por Leandro Boldrini foi clandestina, pois o Juiz não havia autorizado.
Portanto, o Juiz concedeu 90 dias de prazo para Leandro se acertar como filho e atender apenas três singelas pretensões: ter a chave de casa, poder brincar com a irmã e ter um animal de estimação.

Encerrada e confirmada a conciliação, pai e filho deveriam retornar ao Fórum em 13/05/2014, para as devidas avaliações. Quando Odilaine Uglione, a mãe de Bernardo era viva, na casa havia vários cachorros. Com a sua morte, os cães foram dispersados, fotos e pertences queimados e o filho maltratado, até as últimas consequências. O aquário prometido, Bernardo não teve tempo para desfrutá-lo.
Graciele Ugulini, a principal conflitante do lar nunca foi procurada para esclarecimentos sobre a tentativa de asfixia a Bernardo. Até 11/02/2014, nenhum funcionário da Rede de Proteção havia denunciado o ocorrido, apesar das sucessivas comunicações por e-mail do Dr. Marlon Taborda, aos Conselhos de Santa maria e Três Passos. Como Bernardo não falou sobre o assunto, eles também não perguntaram, deixando a madrasta livre para tramar juntamente com o companheiro, o plano macabro.

Andressa Wagner, Marlise Cecília Renz, funcionárias da clínica de Boldrini e Sandra Cavalheiro, amiga de Graciele, sabiam que a madrasta não gostava do enteado e já tinham ouvido dela a intenção de se desfazer do menino. Mas ninguém avaliou a possibilidade de que isso realmente chegasse a acontecer e o segredo ficou escondido até 14/04/2014, quando o corpo de Bernardo foi encontrado. Sandra Cavalheiro, a principal testemunha de acusação, quando soube da morte do menino, se apresentou espontaneamente à Polícia e denunciou o casal.

Ivonete de Mattos, descreve a trajetória de Bernardo durante a sua catequese em 2013:

- "Ele (Bernardo) era malcuidado, quase sempre chegava atrasado, tinha falta de higiene, a gente via que não tinha um adulto dando atenção a ele. De minha parte, nunca falei nada para ninguém, mesmo porque não sabia o que se passava dentro da casa. Eu achava que era ele, que estava na idade, 11 anos, de levantar tarde. Nunca pensei que tivesse passando alguma coisa dentro de casa. Para mim, ele nunca reclamou de nada. Depois, eu me senti meio culpada, porque a religião é fundamentada na família, a gente fala muito em família, a gente incentiva as crianças a respeitar pai e mãe. De repente, quantas vezes a gente falava que pai e mãe é o principal dentro de casa e ele ficava triste ouvindo isso...

A catequista revela ainda que jamais conheceu pai e madrasta. Leandro Boldrini e Graciele Ugulini não participavam das missas, não frequentavam as reuniões de pais e não estavam presentes na cerimônia da Primeira Comunhão de Bernardo.

- "Quando aparecia para contribuir com o dízimo, o pai falava de excesso de trabalho. A gente procura entender a situação das famílias. O caso agora está na Justiça. Não há mais o que comentar." - Encerra, Danielle, a Coordenadora da Catequese da Paróquia Santa Inês, onde por 3 anos consecutivos, Bernardo, abandonado como ele só, cuidou dos preparativos para ingressar na Catequese, providenciou os documentos para a sua inscrição e continuidade e por um tempo, até chegou a ser coroinha.

- "Ele sempre era acolhido, alguém sempre levava ele para casa. Então, talvez por isso, perante os olhos da sociedade, a situação não parecia assim tão grave." - Pondera Isoldi, conselheira tutelar. 

- "A gente sabia que nos finais de semana ele estava na casa das pessoas, mas pessoas da alta sociedade, não era de qualquer um, não estava em casas correndo riscos. Nossa obrigação é averiguar todos os casos que chegam, mas não somos investigadores. Quem tem que averiguar é a Polícia. Temos um limite." - Atesta Nestor, o c

- "Nós encaminhamos certo, fizemos nosso trabalho certo. Pena que aconteceu de ninguém, de não ter passado na cabeça de ninguém, nem na do Juiz, nem na nossa de que chegaria nesse ponto." - Lamenta Deborah, conselheira tutelar.

No início de Abril, enquanto Bernardo fazia planos de decorar seu aquário de segunda mão que ganharia de uma amiga de sua mãe, percorrendo floriculturas e efetuando consultas em livros, Graciele Ugulini e Edelvânia Wirganovicz também se desdobravam nas compras de ferramentas, medicamentos e soda cáustica, mas como uma finalidade bem diferente: assassinar o menino e enterrá-lo em local bem escondido por puro ódio, ganância e crueldade. 

03/04/2014: Bernardo Uglione Boldrini vendeu rifas da escola. Ansioso, ligou 3 vezes para a amiga perguntando se poderia buscar o aquário no dia seguinte, 04/04/2014.

04/04/2014: O menino estava radiante, tendo comunicado aos coleguinhas da escola o motivo de tanta felicidade: a compra de uma TV. Nesse dia, chegou da escola, almoçou peixe, gostou e repetiu
e até lhe foi permitido brincar com a irmã. Um clima de estranha paz reinava na casa, conforme testemunhas. Por volta de 12:30 hs, ainda vestindo o uniforme da escola, Bernardo embarcou para um destino sem volta, acompanhado de Graciele Ugulini. Uma última ligação dele foi detectada no celular de Juçara Petry. Nunca se saberá o que o menino pretendia: se era pedir ajuda ou conversar. Como Juçara estivesse viajando a ligação não se completou e quando ela retornou à noite, o seu filho do coração já estava morto. O celular de Bernardo ainda não foi recuperado.

A notícia do sumiço de Bernardo, quando Leandro Boldrini abriu um B.O em 06/04/2014, se espalhou rapidamente pela cidade, fazendo soar os alarmes dos órgãos de proteção. Um ofício, partindo do Conselho Tutelar foi remetido à Promotora Dinamárcia, que diante das evidências fez novo pedido de suspensão de guarda ao Juiz, que desta vez, além de atender o pedido, teceu longas considerações sobre o caso:

- "Aparentemente, Bernardo, após o falecimento de sua mãe e da nova constituição de nova família pelo pai, passou a ser um estorvo. Logo, se ele estava longe, as conveniências estavam atendidas: infelizmente, essa é a realidade. Frente a essa situação, se - a condicional é o que nos resta neste momento - Bernardo for encontrado com vida e em boas condições de integridade pessoal, seu retorno à degradada realidade que enfrenta em seu lar parental é a medida menos acertada no momento. A suspensão da guarda pretendida pela agente ministerial, é a medida deveras acertada." -  
Proferiu o Juiz.

O corpo de Bernardo foi descoberto em 14/04/2014, em um matagal às margens do Rio Mico, em Frederico Westphalen. Enquanto a população se mobilizava em  intensivas buscas e apelos dramáticos às mídias, para reencontrar o garoto, a Polícia também agia, conseguindo assim, desvendar o bárbaro crime, baseada em imagens de um posto de gasolina que mostravam Graciele Ugulini e Edelvânia Wirganovicz com o menino. Edelvânia logo confessou o crime e mostrou o local onde o menino estava enterrado. O pai Leandro Boldrini e a madrasta Graciele Ugulini, também acusados, tiveram prisão decretada pelo Juiz Fernando Vieira dos Santos no mesmo dia e até hoje permanecem presos aguardando julgamento. Diversos habeas corpus foram impetradas pela defesa para soltura dos réus, mas nenhum foi atendido pela Justiça.

- "Esse caso nos traz a necessidade de repensar questões do cotidiano de que o sistema de garantias como um todo não tem esse olhar com o mesmo cuidado que teria se fosse um filho de classe pobre. Nesse particular, a classe pobre está, entre aspas, melhor assistida. Famílias com melhor poder aquisitivo naturalmente não aceitam essa intervenção. E isso, muitas vezes, inibe o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a Escola." - Analisa Vera Deboni, da 3ª Vara da Infância e Juventude de Porto Alegre.

- "Estamos preparados para identificar e agir nos caso de violência física, facilmente detectados, mas não para perceber a presença da negligência severa e da violência psicológica. Um importante instrumento para identificar a gravidade da situação é a avaliação e o acompanhamento psicológico." - Aponta Regina Fay de Azambuja, coordenadora do Centro de Apoio da Infância e Juventude do Ministério Público/RS. 

Juçara Petry, a mãe do coração de Bernardo, não consegue driblar a saudade que sente do menino. Na residência da Família Petry, muita coisa ficou dele: bilhetes, fotos, trabalhos escolares.  Era nesse lar feliz que Bernardo passava seus fins de semana, estudava, cortava as unhas, imitava o Tio Carlinhos fazendo a barba, experimentava massa de cupcacke, comendo-a crua, coisa que ele amava fazer. Era comum sua presença nas festas e fotos de família. Juçara ainda se atrapalha, colocando um prato para Bê na mesa do almoço.

- "Gostaria que no meio desse turbilhão que se abateu sobre nós, com a morte do Bê, a gente consiga passar para as autoridades que podem fazer alguma coisa, que podem tirar uma criança de casa, que deem um pouco mais de atenção para esses inocentes. Sinto muita falta dele, tem dias que é bem complicado." - Conta Juçara.

- " Tu vai almoçar, parece que ele está chegando, vai trabalhar, parece que ele está vindo. Ele estava sempre junto. Agora está pior, é muita saudade. No início, era aquela luta para achá-lo, depois esse turbilhão de informação. A gente não tinha ideia do que ele passava. Como ele não falou nada, acho que temia por nós. A gente se pergunta: será que ele deu uma pista e não vimos? Aí, depois, vem aquela dor: Meu DEUS! Por quê não arranquei ele de lá? Talvez ele estivesse salvo, hoje estaria aqui. Conosco.
Juçara Petry / Foto de Diego Vara.

OBSERVAÇÃO: Tia Jú, DEUS permitirá que um pouco dessa dor, vai ser com certeza mitigada, com a vitória de Odilaine e Bernardo Uglione Boldrini! A Justiça pode tardar, mas ela não falhará.  

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