A PÁSCOA DE BERNARDO
Reprodução: arquivo pessoal
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Quantas crianças tem Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) no quarto? Bernardo tinha. Em vão pediu socorro a quem deveria protegê-lo.
Quanto
vale uma vida, num sistema jurídico-constitucional que interdita, dentre as
suas cláusulas pétreas - em tempos de paz -, a pena de morte? O poeta mexicano,
que faz as vezes de ativista político, subcomandante Marcos, disse certa feita
que uma vida vale um mundo melhor, e nada menos. É uma afirmação moral que ecoa
o sentido redentor da promessa embutida no suplício sacrificial do Cristo, para
os cristãos, da travessia no deserto, em busca da terra prometida, sem
escravidão na carne da memória, para os judeus.
A páscoa é um mito fundador que
expressa de que se deve fazer a fundação moral e política de pessoas e
comunidades. Rito sacrificial redentor, libertação, espera pelo tempo geracional
em que a escravidão perderá carne, para que a liberdade se torne norma e vida.
Não é preciso ser religioso, nem judeu, nem cristão, para entender o alcance e
o sentido civilizatório desse mito. Tampouco é preciso ser poeta ou ativista,
para saber, como Bernardo sabia, que o direito não tem preço e não deve ter.
Uma ordem jurídico-constitucional ou é livre de
precificação, ou não é livre. Estamos acostumados, por um senso comum
construído midiaticamente e pela herança bacharelesca e sub-letrada que assola
nossos tribunais, a achar que o direito só funciona para quem tem dinheiro.
Quando vemos um réu com um advogado que cobra caro por serviços como habeas
corpus (que, no Brasil, pode ser redigido por qualquer cidadão ou cidadã),
tendemos a crer que ele será absolvido e que não será devidamente punido. A
afirmação tem algum sentido, naquilo que revela de ilegalidade contra os réus e
condenados que não têm dinheiro.
Os presídios estão cheios de pessoas
ilegalmente enjauladas, sem inquérito concluído e ou em andamento, com prazos
estourados, sem advogados. O diagnóstico de que todo sistema é falho, neste
caso, coincide com o de que ele é falho para quem é pobre. Quem é pobre não tem
direito a ser livre e a exercer a personalidade jurídica segundo prerrogativas
fundadoras do estado de direito, pelo menos em termos penais.
É assim que a impunidade penal é prerrogativa de
quem tem dinheiro e poder. Nessa desigualdade jurídico-institucional vigora o
nosso caráter violento e refratário a uma ordem de regras em que a
personalidade de direito goze do reconhecimento de prerrogativas de proteção, a
despeito de classe social e poder econômico. O autoritarismo é um modo de vida
(anti-) social no qual a força prevalece sobre a juridicidade, sobre o consenso
e o reconhecimento.
É o domínio pelo arbítrio, pela manipulação da lei, pelo
cultivo dos preconceitos, das condutas arcaicas, das crenças irracionais, dos
delírios místico-religiosos, das perseguições aos mais fracos, inclusive
fisicamente, que explica a dificuldade que o sistema de proteção aos direitos
da mulher, da infância e da adolescência tem, de vigorar livremente, isto é,
universalmente, a despeito da contaminação de nossas barbáries pré e
anti-jurídicas. Um dos efeitos mais perversos dessa contaminação consiste nas
tentativas de corrigir, pela via institucional, desigualdades econômicas e
sociais, a despeito do direito.
É isso o que explica a aparentemente paradoxal
desproteção jurídica que acomete mulheres, crianças e adolescentes que não
padecem dos efeitos da desigualdade material, e que por isso seguem invisíveis,
não-reconhecidos, na prática, por sistemas protetivos incapazes, de fato –
embora juridicamente obrigados a tanto -, de protegê-los e de reconhecê-los.
Esta anomalia institucional, que contamina e enfraquece essa rede de proteção,
explica a Páscoa de Bernardo Uglione Boldrini.
O assassinato que todos viram (e que ninguém
sabia o que estava vendo?)
Bernardo Uglione Boldrini foi assassinado, aos
11 anos, no dia 4 de abril deste ano, no Rio Grande do Sul. Seu corpo foi
encontrado no dia 14, na beira de um rio, em Frederico Westphalen, cidade que
fica a 80 quilômetros daquela em que vivia, Três Passos, no noroeste do estado.
Quem levou a polícia à cova preparada com antecedência de dois dias para receber
o corpo do menino foi uma das acusadas, que já teria confessado participação no
crime, moradora da cidade em que ela e a madrasta de Bernardo se desfizeram dos
seus restos mortais. A acusada que confessou o crime afirmou que Bernardo foi
assassinado com uma injeção letal, de analgésicos e ou anestésicos.
Há também a
informação de que teriam derramado soda cáustica sobre a criança, a fim de
acelerar o processo de decomposição, impossibilitando a identificação do corpo.
O pai, médico cirurgião dono de uma clínica na pequena cidade, a madrasta,
enfermeira e sócia desta mesma clínica, e uma amiga do casal, que se diz
assistente social, estão presos. São os principais suspeitos da execução final
de Bernardo, que começou, na verdade, há quatro anos. E aos olhos de todos.
Há pouco mais de quatro anos a mãe de Bernardo
se matou, segundo consta em inquérito, com um tiro na cabeça, na clínica do
pai. Ambos estavam em processo de separação, o pai de Bernardo já se
relacionava com quem veio a se tornar madrasta e mãe de sua irmã, nascida há um
ano e meio. Bernardo foi morar com o pai e a madrasta e seu suplício público
teve início, aos olhos de uma comunidade de menos de cem mil habitantes. Há
quase quatro anos, ele se tornou “o filho do médico”, que fica pelas ruas, do
lado de fora da casa de seis quartos, sem chave para entrar, sem que ninguém o
busque na escola, sem ter como entrar em casa.
Estudava numa escola privada e cara. Bernardo
não passava nenhum final de semana com a família, mas na casa dos amigos, sem
nunca receber um telefonema, para saber se estava bem, se e quando voltaria
para casa. A criança pediu socorro ao Conselho Tutelar, ao Ministério Público,
e, como se poderá inferir, a sua origem e condição econômica e social operaram
como interditos à proteção de sua vida.
Na noite em que foi comunicado o desaparecimento
de Bernardo, senão toda, grande parte da cidade, de alguma maneira, sabia ele
tinha sido morto. Era algo que a comunidade considerava possível, no mínimo
previsível. Quando o corpo foi encontrado, dez dias depois, uma horda catártica
tomou as ruas, dirigiram-se à casa da família da madrasta, à casa do pai de
Bernardo. Todos pareciam saber o quanto essa imputação, feita pelas autoridades
policiais, faz sentido.
Esta certeza, confusa e irrefletida, porém sólida, está
para o crime como uma peculiar e macabra antecipação. Ela revela muito de uma
comunidade que assistiu à construção de um assassinato e se manteve
indiferente, ao ponto da cumplicidade com o desfecho. A frieza com que o pai e a
madrasta teriam recebido as notícias, primeiro, do corpo encontrado e, depois,
da voz de prisão, anda de par com essa outra certeza de uma comunidade inteira,
diante do anúncio do desaparecimento: Bernardo tinha sido assassinado.
Por que se pode dizer que boa parte da
população, de alguma maneira, sabia que Bernardo tinha sido assassinado, quando
foi dado como desaparecido? Há uma série de respostas possíveis, dentre as
quais, estas:
1. Porque todos sabiam e viam que se tratava de
criança em estado de abandono e maus tratos (sim, abandono, desamor,
indiferença e descuido configuram maus tratos).
2. Porque ele foi prestar queixa de indiferença
e desamor, e o Ministério Público e uma assistente social sabiam o que se
passava e o juiz da cidade decidiu pela reconciliação prometida pelo pai, em
juízo, diante do filho. Vizinhos que não quiseram se identificar afirmam que o
pai dizia-se receoso dos impactos sobre a imagem própria, com a entrega do
filho para outra família adotá-lo.
Já as outras famílias temiam o pai de
Bernardo. O Ministério Público e o Judiciário se pronunciaram, argumentando que
o Estatuto da Criança e do Adolescente privilegia o laço biológico-familiar e
que a decisão de levar a sério o compromisso assumido pelo pai de Bernardo de
tornar-se pai, em juízo, teria sido juridicamente acertada.
Mas é preciso
previsão legal para se exigir laudo médico-psiquiátrico, da criança e da
família, para atestar as condições em que as queixas de indiferença e desamor
se legitimam? Há ou haveria algum remédio jurídico disponível para o desamor e
a indiferença? Será que a única resposta a isso teria de ser a prisão, após um
crime barbaramente cometido?
A promotora alegou, também, que “não havia
evidências de agressão física”, como se a indiferença de um pai com um filho
fosse de alguma maneira (qual?) menos lesiva que a agressão física. O que leva
alguém a acreditar seriamente nisso?
3. Porque a escola sabia que Bernardo passava
todos os fins de semana na casa de amigos, e porque tinha a escola como o seu
lar, como afirmou uma professora, nos jornais. A escola não respondeu, e
ninguém se dignou a questioná-la, por que razão, dado esse comportamento do
aluno, a família não foi acionada e eventualmente denunciada. A escola, assim
como a cidade inteira, sabiam que Bernardo estava, diariamente, sendo
assassinado por essa família biológica.
4. Porque as famílias que Bernardo nomeou como
possíveis adotantes jamais compareceram ao Ministério Público, para confirmar a
intenção de consumar o processo adotivo e porque a cidade sabia e sabe, que
havia temor frente à condição social e econômica do pai dele.
Indiferença e crenças antijurídicas tornaram
possível a consumação da barbárie. O juiz e a promotora dizem, com assombrosa
convicção verbal – gestualmente, a convicção parece menos clara -, que não
havia o que fazer, além do que fizeram.
Queimam os olhos duas informações, publicadas
nos jornais: a primeira é que, três dias após a divulgação de que Bernardo
estava desaparecido, o ministério público retirou a guarda da criança do pai.
Esta suspensão se ampara na certeza, socialmente constituída, de que a criança
tinha sido assassinada. Portanto, a imprevisibilidade e a surpresa estão
ausentes.
A segunda informação é reveladora do problema institucional que
assistiu aos passos do assassinato de Bernardo, escravizado por uma concepção
de estado e de cidadania segundo a qual ter condições materiais, prestígio
social e acesso a escolas privadas retira da criança abusada, vitimada por todo
tipo de faltas imateriais (que como se sabe, e promotores e juízes podem e
devem saber, são sempre as mais graves e determinantes da saúde e da
integridade e dignidade de qualquer pessoa), legitimidade como vítima e
denunciante. A assistente social perguntou à promotora, como também se pôde ler
nos jornais, se a promotora estaria disposta a invadir a intimidade de família
de classe alta.
No jornal se lê que havia interesse econômico e
patrimonial, uma briga por herança, como motivações para o crime. É preciso não
levar a sério a certeza que tomou conta da cidade para se acreditar nessa tese.
É preciso não ter clareza quanto ao fato de que a proteção à criança e ao adolescente,
à mulher vítima de violência, deve independer de classe social – se não, não é
jurídica, mas uma mera extensão da assistência social. Não há exagero algum em
afirmar que Bernardo Boldrini estaria vivo, nem que fosse num abrigo, caso
tivesse um pai pobre e uma madrasta, idem. A escola de Bernardo, fosse pública,
já teria encaminhado a criança ao conselho tutelar da cidade, a fim de que
providências fossem tomadas.
O pai já estaria respondendo a processo, a
madrasta, idem. Não é um problema patrimonial, é um problema político e
institucional que atravessa a concepção de estado de direito e torna possível
que uma população inteira assista a uma criança ser maltratada, abusada,
abandonada e, por fim, brutalmente assassinada, e não reagir a tempo, porque a
família tem dinheiro e poder. Será que ninguém sabia o que estava vendo, diante
de seus próprios olhos, diariamente, há anos, naquela cidade e escola e, por
assim dizer, família? De onde vem a crença que crianças são propriedades
familiares?
Despatrimonializar a percepção do direito e o
direito
A desigualdade social e econômica produz muitos
monstros e estes deixam seus filhos e netos, qual carrascos das possibilidades
civilizatórias e universalizantes do estado de direito. Até quando a polícia e
as políticas protetivas operarão segundo critérios econômicos e materiais? Em
que se baseia a crença de que famílias pobres e materialmente frágeis são, por
isso mesmo, mais violentas e vulneráveis à violência contra as suas crianças e
adolescentes? Qual o estudo sério que demonstra que a mulher pobre e miserável
apanha mais, é mais humilhada, mais brutalizada, do que aquela outra, que vive
no salão de beleza, que maquia as partes espancadas, para esconder a vergonha
de apanhar do marido rico e poderoso?
Bernardo foi vítima de um homicídio brutal, que
tem suspeitos e um inquérito em andamento, além de uma abundante série de
evidências e testemunhos. Esse homicídio se tornou possível porque as
instituições que devem, pela lei, proteger, educar e salvaguardar os direitos
das crianças e adolescentes operaram em consonância com o autoritarismo, e não
com o direito. A dor na alma que o abandono e a indiferença podem causar numa
criança ferem e podem ferir tanto como um espancamento. Não é preciso fazer
graduação e ocupar um cargo público para saber disso.
A violência herdada e
perpetrada pelo passado de barbárie não pode e não deve mais ser acolhida pelas
instituições do estado como fossem coisas naturais. Neste momento, milhares de
crianças, materialmente protegidas, estão jurídica e institucionalmente
desprotegidas, e podem estar, a um só tempo, com todas as mensalidades em dia
(do plano de saúde, do colégio, das roupas, do cartão de crédito, do
smartphone), enquanto são humilhadas, negligenciadas, espancadas, maltratadas,
abandonadas, agredidas verbalmente. É preciso despatrimonializar a percepção da
personalidade de direito, de nossas instituições, em todos os sentidos.
Quantas crianças de 11 anos têm o Estatuto da
Criança e do Adolescente no seu quarto? Bernardo Uglione Boldrini tinha. Em
vão, pediu socorro às instituições que deveriam protegê-lo. Mas as mensalidades
estavam em dia, a família de classe alta tinha intimidade a ser “invadida”
(isso sugere que as famílias pobres não tenham intimidade, em tempo?). Ele era
o coroinha da cidade, era amparado por famílias que hoje choram e provavelmente
sentem culpa por terem se ausentado quando o Ministério Público as aguardava,
com a confirmação da intenção de acolhê-lo em seus núcleos familiares.
A Páscoa de Bernardo
Páscoa significa passagem e, tanto para os
judeus, como para a sua apropriação cristã, essa travessia é uma metáfora da
libertação. Para os judeus, está em jogo a libertação da escravidão, da
humilhação e dos abusos sobre um povo inteiro.
Cada judeu, diz a teologia judaica, é liberto e
tem uma obrigação moral e memorial de viver e arcar com o significado dessa
libertação, em sua alma, em sua humanidade, em sua relação com os outros, na e
pela páscoa. Toda a narrativa que comporta 40 anos de deserto, antes da chegada
a Canaã, revela um lapso temporal e teológico fecundo: para chegar à terra
prometida, redentora, é preciso uma geração livre, sem escravidão na própria
carne. Pessoas livres é que podem querer a liberdade. Este corolário tem muitas
versões políticas em disputa até hoje.
Um deles é este: a liberdade e o pertencimento
são conquistas de uma história comum, de uma memória cultivada e da superação
da escravidão. Foi Spinoza que, salvo engano pela primeira vez na história do
pensamento, tratou o significado da páscoa judaica em toda a sua
universalidade, e buscou, nesse traço universal, fundamentar a inteligibilidade
de toda comunidade política legítima.
Para os cristãos, a Páscoa também é travessia e
libertação e contempla o mais doloroso e radical rito sacrificial das religiões
monoteístas. O filho de Deus ele mesmo, entrega-se ao suplício e à morte, e faz
deste sacrifício a travessia para a libertação. A cruz em que criminosos eram
punidos, torna-se o símbolo de dor e o signo de um compromisso moral e
religioso, com a vida encarnada e com a vida além da morte da carne. Esta
versão, salvo melhor juízo e levando em conta as inúmeras interpretações
teológicas da ressurreição e do sacrifício do Cristo, é menos comunitária e
mais estritamente moral.
A sua universalidade parece derivada estritamente de
um postulado segundo o qual aquilo que pensamos, sentimos e com que nos
comprometemos moralmente, segundo o que acreditamos, sobrevive e deve
sobreviver às limitações da dor física, da carne, da finitude, de nosso
cotidiano vale de lágrimas. A liberdade se torna um reino a que todos os homens
e mulheres pertencem, sem outra condição que um dispositivo consciente e moral,
fora da história, aquém e além da vida política e comunitária.
Este crime bárbaro interpela
e opera qual um anzol rasgando o fígado: quanto vale, mesmo uma vida? Vale a
legitimidade de uma comunidade política qualquer, isto é, vale a vida de todos,
diria Spinoza. Vale todo o sacrifício implicado pela nossa possibilidade de
sermos maiores do que nós mesmos, e sobrevivermos ao nosso sangue, diz-nos a
mitologia cristã. Uma vida vale, em suma, e em bom Direito, uma Páscoa.
Uma foto que vale mais que mil palavras...
Arte: Solange Vieira
Não se omita...ao primeiro sinal de
desgraça...grite...Denuncie!!!
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OBSERVAÇÃO: Vocês que são do Direito, por favor, ajude as pessoas. É muito grande o número de injustiças e as pessoas geralmente não tem acesso à Justiça. Elas precisam muito de ajuda.
parabéns pela materia, muito bem falado ,tb acho isso tudo.
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