terça-feira, 18 de outubro de 2016

O que temos a aprender com a história de Bernardo Uglione Boldrini


O QUE NÃO PODE DEIXAR DE SER FEITO, APÓS A MORTE VIOLENTA DE UMA CRIANÇA


Arquivo: foto divulgação


           “A morte de uma criança dá vontade de devolver ao universo o meu bilhete de entrada”.
F. Dostoiévski (1879). Os irmãos Karamazov.

 Texto da Dra. Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams.
Acompanhamos chocados, o noticiário sobre a morte do menino Bernardo Boldrini, de 11 anos, que morava em Três Passos (RS). Bernardo foi cruelmente assassinado no dia 4 de abril de 2014, sendo os principais suspeitos: o pai do menino que é médico, a madrasta enfermeira e uma amiga do casal, assistente social.
Além do luto pela perda da vida de um menino com a vida inteira pela frente, nossa sensação de frustração é maximizada pelas informações de que a Rede de Proteção foi acionada e falhou em proteger Bernardo de uma violência que era praticada cotidianamente, culminando com a sua morte. O Conselho Tutelar havia sido acionado, assim como a Promotoria da Infância e da Juventude, operadores de direito entraram em ação, uma assistente social da Prefeitura emitiu um relatório e um juiz da Infância e da Juventude tomou uma decisão sobre a guarda da criança.
O caso segue na Justiça que irá analisar a situação e julgar os responsáveis. Algo precisaria, no entanto, ser feito com urgência – auxiliar para que o Brasil não tenha outro caso parecido com o do Bernardo, resultando em morte.
Como fazer isso?
Em alguns países, como os Estados Unidos que se preocupam há mais tempo com os maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes, quando uma criança ou adolescente morre de maneira violenta, traumática, obscura ou suspeita, entra em ação uma Comissão multidisciplinar denominada “Child Fatality Review” (Comissão sobre Fatalidade Infantil).
Tal Comissão é composta por especialistas que se reúnem após a morte inesperada da criança/adolescente, não para apontar culpados (a isso compete o trabalho da polícia e do Judiciário), e sim para aprender com os tristes fatos e propor formas de preveni-los no futuro, revisando a história e os dados obtidos em prontuários, relatórios, depoimentos ou esclarecimentos (na escola, no hospital, no instituto médico-legal, no Conselho Tutelar, no Judiciário ou mesmo na mídia).
Avalia-se, assim, onde ocorreu e se ocorreu falhas de atendimento/omissão de socorro ou de cuidados de proteção/abandono/negligência profissional ou familiar/falta de notificação ou denúncia e assim por diante. Ou seja, a função básica de tal Comissão consiste num esforço pouco praticado no Brasil – a prevenção. Recomendações são feitas em decorrência do trabalho de tal Comissão, havendo inclusive propostas de políticas públicas como, por exemplo, angariar recursos públicos para a capacitação de profissionais da Rede de Proteção para, por exemplo, compreender melhor os efeitos da negligência para o desenvolvimento da criança; o quão grave é a violência psicológica, modalidade que geralmente precede atos de violência física; que sem intervenções apropriadas baseadas em evidência, os atos familiares de violência escalonam para uma intensidade ou frequência mais grave e que uma criança tem o Direito de ser ouvida com propriedade pelo nosso Judiciário.
Há algo que também merece ser revisto com urgência no Brasil: a crença cega no princípio da “preservação dos laços familiares” adotando de modo rígido, a regra geral de que a melhor opção para o desenvolvimento saudável de uma criança é a convivência com um pai, mesmo quando esse pai é negligente e abusivo.
No 1º. Congresso Ibero-Americano de Psicologia Forense, realizado nesse mês de abril em Curitiba, tive o privilégio de ouvir a palestra do Desembargador José Antônio Daltoé Cezar sobre “Destituição do poder familiar e medida protetiva de acolhimento institucional”, na qual o Dr. Daltoé explicou os erros históricos de nossa sociedade que levaram à doutrina de priorizar laços familiares biológicos, nos dando exemplos de como o Judiciário deixa atualmente a criança anos a fio em uma situação de abrigamento por adotar como regra a decisão baseada no princípio de que a família biológica é sempre a melhor opção para a criança.
Preocupada com o fato de não termos Comissões que analisem mortes violentas de crianças, postei em 2011 uma pergunta sobre o funcionamento desse tipo de Comissão no endereço eletrônico da ISPCAN (International Society for the Prevention of Child Abuse & Neglect – Sociedade Internacional para a Prevenção do Abuso e Negligência da Criança e do Adolescente) e surgiram respostas (e muito material) de pesquisadores e ativistas envolvidos com o tema em diversos países. Houve muito receptividade a uma iniciativa do Brasil em tal direção e oferta de consultoria de vários membros. Um deles, o Dr. Michael Durfee, psiquiatra infantil de Los Angeles e pioneiro na implantação de tais Comissões, disse que o resultado desse trabalho é tão importante a ponto de ter mudado a forma como os médicos legistas atuam nos EUA.
Desde então, o Dr. Durfee me pergunta se surgiram iniciativas nesse sentido no Brasil, mas infelizmente minha resposta tem sido negativa. Ele disse que basta começarmos em nível local – ou seja, que um município tome essa iniciativa para depois mostrar ao país os benefícios de tal atuação.
Nas Secretarias Estaduais de Saúde geralmente existe um serviço ou departamento de investigação e classificação dos dados da certidão de óbito para fins estatísticos do Estado e, para fazer parte de um trabalho de cooperação nacional, seria importante a construção de um banco de dados nacionais. Para isso seria fundamental o apoio e os recursos da SEDH e/ou Ministério da Saúde e/ou Ministério da Justiça e/ou CONANDA de modo a desenvolver o trabalho com seriedade.
Fico pensando, por exemplo, no caso da menina Joana que morreu de forma suspeita em 2010 quando estava aos cuidados do pai biológico depois que uma Juíza acusou a mãe (médica) de alienação parental. A mãe de Joana afirma que sua filha foi vítima do poder judiciário. Ela parece ter razão, mas o erro parece também ter sido de médicos e demais membros da rede de proteção. Por que não aprender com as histórias trágicas de Joana, Bernardo, Isabela e tantas outras de forma a evitarmos mortes futuras de outras crianças brasileiras?
Lúcia Cavalcanti de Albuquerque Williams é Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e Coordenadora do Laprev (Laboratório de Análise e Prevenção da Violência)
Disponível em:

Nenhum comentário:

Postar um comentário